Uma crise considerada “sem precedentes” no fornecimento de componentes, aliada à queda da demanda no mercado interno com o agravamento da pandemia, levou à paralisação total ou parcial de 13 das 23 montadoras de automóveis do país, que somam 29 fábricas paradas, de um total de 58. Os dados são da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores).
Essa não é a primeira vez que parte da indústria interrompe atividades no Brasil esse ano.
Entre janeiro e fevereiro, durante a crise de falta de oxigênio em Manaus, ao menos quatro fabricantes de motocicletas da Zona Franca paralisaram temporariamente a produção, segundo a Abraciclo (Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares). Outras indústrias da região tiveram que reduzir turnos devido ao toque de recolher imposto para conter a proliferação do vírus no Estado.
Com a parada de produção, especialistas no setor automotivo estimam que até 300 mil veículos podem deixar de ser produzidos esse ano. E entre 60% e 70% dos cerca de 105 mil empregados diretos do setor estão em casa nesse momento.
A paralisação temporária de parte da indústria piora a perspectiva para o desempenho da economia brasileira em 2021. As projeções para o PIB (Produto Interno Bruto) já vêm sendo reduzidas desde janeiro, devido ao agravamento da pandemia e lento avanço da vacinação.
No início do ano, a projeção mediana do mercado para o avanço do PIB em 2021 era de 3,4%, após queda de 4,1% registrada em 2020. No boletim Focus do Banco Central mais recente (de 29/3), a previsão de crescimento para esse ano já estava em 3,18%. Mas os mais pessimistas já apostam em números abaixo dos 3%.
Paradas em cascata
A Volkswagen foi a primeira montadora a anunciar a suspensão da produção no país, no dia 19 de março. “Com o agravamento do número de casos da pandemia e o aumento da taxa de ocupação dos leitos de UTI nos estados brasileiros, a empresa adota esta medida a fim de preservar a saúde de seus empregados e familiares”, informou a companhia, na ocasião.
Nos dias seguintes, os anúncios de parada se sucederam. Algumas das empresas apontaram a falta de componentes como motivo para redução da produção, caso da Volvo e da GM.
“A Volvo vai reduzir a produção de caminhões em sua fábrica de Curitiba”, disse a montadora sueca. “O motivo é o alto nível de instabilidade na cadeia – global e local – de abastecimento de peças, principalmente semicondutores, combinado com o agravamento da pandemia”.
No último levantamento da Anfavea (de 30/3), estavam paradas: Mercedes, Renault, Scania, Toyota, Volkswagen, Volkswagen Caminhões e Ônibus, BMW, Agrale, Honda, Jaguar e Nissan. GM e Volvo não pararam totalmente, mas reduziram substancialmente a produção.
As paralisações começaram em 24 de março e as empresas planejam voltar entre 5 de abril e o final de maio. Mas os analistas avaliam que as paradas podem ser estendidas, dependendo do andamento das medidas de isolamento social nos estados e municípios, já que em muito deles as concessionárias estão fechadas, impedindo as vendas.
Faltam chips em todo o mundo
Conforme Milad Kalume Neto, gerente de desenvolvimento de negócios da Jato Dynamics, consultoria especializada no mercado automotivo, são dois os motivos principais que levaram à onda de paralisação nas fábricas brasileiras de automóveis.
“O primeiro motivo é a falta de peças, decorrente de logística internacional, e problemas de suprimento, principalmente de semicondutores”, afirma o consultor.
Segundo o especialista, o déficit de produtos se deve à recuperação da economia chinesa. O país asiático é o maior produtor de chips do mundo e tem priorizado seu mercado interno na retomada, em detrimento da exportação para outros países.
Além disso, os semicondutores também são usados pela indústria de notebooks, computadores, consoles de videogame, televisores e celulares, produtos cujas vendas cresceram muito na pandemia, devido à permanência das pessoas em casa.
“Em paralelo a isso, há também a diminuição das vendas em função da paralisação dos grandes centros urbanos pela segunda onda da covid”, diz Kalume Neto.
De acordo com dados da Fenabrave, associação que representa as concessionárias, no acumulado de janeiro e fevereiro desse ano, foram emplacados cerca de 339 mil veículos no Brasil, entre carros, comerciais leves, caminhões e ônibus.
O montante representa uma queda de 14% sobre o mesmo período de 2020, sob impacto também do aumento de ICMS sobre a venda de veículos em São Paulo, estado que responde por mais de 23% da venda de carros novos e 40% das transações de usados no país.
Cassio Pagliarini, consultor associado da Bright Consulting, cita ainda a preocupação social das montadoras em meio ao agravamento da crise sanitária. “Com o aumento no número de mortes e infecções, as montadoras decidiram, em conjunto com os sindicatos, parar as atividades e fazer um plano de recuperação da produção mais à frente”, diz Pagliarini.
Parada da indústria automotiva tem efeito em cadeia
A paralisação temporária da indústria automotiva deve impactar a produção industrial e também o desempenho do PIB em 2021, avalia o economista Claudio Considera, coordenador do Monitor do PIB do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).
Com base em dados do Sistema de Contas Nacionais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para 2018, Considera destaca que a fabricação de automóveis, caminhões, ônibus e autopeças representa 0,9% do PIB brasileiro e 6,7% do PIB da indústria de transformação; 0,4% do emprego total do país e 4,1% do emprego da indústria; além de 1,4% dos salários da economia e 8,8% dos salários do setor industrial.
“Acontece o seguinte: isso é só o peso direto. Porque a indústria automotiva compra plástico, laminados de aço, produtos químicos, produtos metálicos, produtos de borracha”, enumera o economista. “Tudo isso deixa de ser demandado quando você para de produzir automóveis.”
Em fevereiro, mesmo antes da paralisação das montadoras, a produção industrial brasileira já havia recuado 0,7%, em relação a janeiro, com queda de 7,2% da produção de veículos, segundo o IBGE.
O Ibre-FGV estima que o PIB do país deve cair 0,5% no primeiro trimestre e outro 0,5% no segundo trimestre. Ainda assim, o instituto projeta alta de 3,2% do PIB no ano, contando com o avanço da vacinação e reabertura gradual das atividades no segundo semestre.
Zona Franca de Manaus em alerta
A perspectiva de menor crescimento do PIB brasileiro este ano coloca os fabricantes do Polo Industrial de Manaus em estado de atenção.
Algacir Polsin, superintendente da Suframa (Superintendência da Zona Franca de Manaus), autarquia ligada ao Ministério da Economia que administra a Zona Franca, lembra que empresas do polo tiveram a atividade afetada no início desse ano, durante a crise de falta de oxigênio no Amazonas.
“Houve paralisação do período noturno, do terceiro turno das fábricas, em virtude das restrições do governo do Estado”, diz Polsin. “Também houve paradas momentâneas de produção, por decisão de algumas empresas, por segurança, falta de peças ou até mesmo pela questão do oxigênio, que é usado na indústria e foi remanejado para a saúde.”
Segundo a Abraciclo, entidade que representa a indústria de motocicletas, as fabricantes Honda, Dafra, Triumph e J. Toledo (representante da Suzuki no Brasil) chegaram a parar temporariamente a produção em Manaus.
Em janeiro, quando a produção industrial do Brasil como um todo avançou 0,4%, em relação ao mês anterior, a produção no Amazonas despencou 11,8%, conforme o IBGE. Ainda não há dados regionalizados para fevereiro.
“Nesse momento, já estamos com o polo industrial funcionando em ritmo normal. Mas estamos aguardando o que está acontecendo no restante do país”, diz Polsin. “É natural que qualquer redução da demanda de produtos acabados, em virtude de restrições de trânsito e de funcionamento do comércio no restante do país, possa afetar o Polo Industrial de Manaus.”
O desempenho da indústria automotiva também está sendo acompanhado de perto. “Temos peças de automóveis que são fabricadas aqui em Manaus e estamos acompanhando a situação, para ver se isso pode, com o passar do tempo, impactar o polo.”
Polsin destaca porém que, em 2020, a Zona Franca registrou um crescimento de 14% no faturamento, em relação a 2019, mesmo em meio ao grave efeito do coronavírus sobre Manaus.
“A produção foi muito afetada em abril e maio do ano passado, em virtude da pandemia. Mas depois, voltou a crescer”, diz o superintendente.
Segundo ele, isso foi possível devido à mudança de hábitos da população brasileira, que resultou em um aumento das vendas de aparelhos de ar condicionado e itens de informática, devido ao trabalho remoto e ensino à distância. Além do forte crescimento na procura por motos e bicicletas, como resultado do avanço do delivery.
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FONTE: BBC