Numa votação histórica e após 35 anos de tentativas sem sucesso, a Câmara dos Deputados aprovou nesta quinta-feira, 6, o texto-base da proposta de reforma tributária, que muda o sistema de impostos do País. O placar foi folgado: 382 votos a favor e 118 contrários no primeiro turno e 375 votos a favor e 113 contrários no segundo turno, encerrado pouco antes das 2h desta sexta-feira, 7. Por se tratar de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), eram necessários 308 votos.
A Câmara continuará a análise dos destaques (pedidos de alteração) a partir das 10h desta sexta. Após encerrada a votação, o texto segue para o Senado.
A PEC 45 altera a tributação dos impostos que incidem sobre o consumo de bens e serviços e cria três novos: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), substituindo o ICMS dos Estados e o ISS dos municípios; a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que substitui PIS, Cofins e o IPI, que são federais; e o Imposto Seletivo, que incide sobre produtos danosos à saúde e ao meio ambiente. Os novos impostos começam a valer em 2026, com um período de teste, e passam a ter vigência integral em 2033.
O modelo de cobrança será o do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), que acaba com a tributação em cascata. Outro pilar da reforma é a mudança da tributação do consumo (onde o bem ou serviço é produzido) para o destino (onde é consumido) — a fim de acabar com a chamada guerra fiscal entre Estados.
Num gesto raro antes da votação, o presidente da Câmara, Arthur Lira, resolveu fazer um pronunciamento da tribuna para rebater os críticos da reforma e pedir os votos. Ele solicitou aos deputados que não se deixassem levar por críticas infundadas de quem nunca quis a reforma. “Sairemos daqui com a cabeça erguida, vamos escrever os nossos nomes na História”, disse. O PL, partido do ex-presidente Bolsonaro, orientou a bancada a votar contra. Mesmo assim, 20 deputados do partido votaram a favor da reforma.
O relator, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), afirmou que, com a votação, o País “não olha para a esquerda nem para a direita, mas para frente”. “Poderíamos fazer melhor, mas estamos fazendo o melhor que podemos fazer”, disse. Ele agradeceu nominalmente políticos que participaram das negociações, citando o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) e os membros da Frente Parlamentar do Agronegócio. Ribeiro também citou que começou a discutir a proposta ainda durante o governo Bolsonaro, com o então ministro da Economia, Paulo Guedes.
Para a aprovação da reforma, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o relator, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), fizeram uma série de concessões, beneficiando ainda mais o agronegócio e o setor de serviços com taxação mais baixa.
Com forte lobby junto aos deputados e se aproveitando da pressa de Lira para concluir a votação, os dois grupos mais resistentes à reforma durante os últimos anos jogaram pesado e conseguiram emplacar a maior parte das suas demandas.
Apesar da resistência da equipe econômica, o agro e os supermercados foram atendidos também com a criação de uma cesta básica nacional, cujos produtos terão alíquota zero. Com os pleitos atendidos, a bancada ruralista declarou apoio à reforma em plenário.
Faltando menos de uma hora para o início da votação, o relator cortou ainda mais a alíquota que já era reduzida para um grupo de setores, mercadorias e atividades, como saúde, educação, medicamentos, transporte coletivo, produtos agropecuários e produtos de cuidados básicos à saúde menstrual, como absorventes.
O imposto para esse grupo de favorecidos será 60% menor do que para os demais contribuintes. Antes, a tributação era 50% mais baixa.
Aguinaldo também ampliou a lista dos beneficiados com a alíquota reduzida para produção jornalística e audiovisual nacionais. Os setores de hotelaria, parques temáticos e de diversão, restaurantes e aviação regional conseguiram ser incluídos nos regimes específicos de tributação.
Nova emenda
Após a aprovação do texto-base, foi aprovada por 379 votos uma emenda aglutinativa, unindo diferentes propostas legislativas de acordos que foram firmados na última hora. O objetivo era atender a segmentos com interesses específicos para que não atrapalhassem a votação.
Dessa maneira, entraram na lista com alíquota reduzida atividades desportivas, aquícolas, bens e serviços relacionados a segurança e soberania nacional, segurança da informação e segurança cibernética. A emenda também ampliou a imunidade tributária de “templos de qualquer culto”.
O texto adicional abre a possibilidade de os Estados instituírem um novo tributo: uma contribuição sobre produtos primários e semielaborados, produzidos nos seus territórios, para investimento em obras de infraestrutura e habitação.
A permissão surpreendeu os tributaristas. Segundo o tributarista Luiz Bichara, até então, a contribuição era prerrogativa da União. “A emenda aglutinativa contém temas relevantes e que, por isso mesmo, deveriam ter sido debatidos. Essa sofreguidão cria uma mácula no processo legislativo”, criticou Bichara, que considera as novas contribuições estaduais “muito grave” .
“Cria-se uma competência constitucional nova, e dá-se autorização para que os Estados criem tributos novos, revelando o descompromisso da PEC com a manutenção da carga tributária Além disso, certamente estamos diante de um dispositivo que vai onerar exportações“, avaliou. “Amanhã os Estados poderão tributar com essa nova contribuição petróleo, energia, minério… enfim, agora se entende que “acordo” foi esse. Como sempre, às custas do sangue do contribuinte.”
O resultado foi um texto repleto de exceções, na contramão de um dos pilares da reforma pretendida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o secretário extraordinário, Bernard Appy: uniformidade de alíquota e o menor número de regimes diferenciados e especiais.
A porteira aberta por Lira e Aguinaldo, em menos de 24 horas, comprometeu o texto original apresentado há duas semanas e acabou deixando uma pergunta no ar: afinal, qual será a alíquota básica do novo imposto?
Quanto maior o número de exceções, maior será a alíquota básica (de referência) do imposto que será paga por todos os outros contribuintes brasileiros. Antes da votação e sem tantas exceções, a expectativa era de que a alíquota seria de 25%. Críticos contumazes da reforma preveem que será a maior alíquota de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) do mundo.
Appy acompanhou a votação dentro do plenário, próximo à mesa, e se emocionou com a aprovação da proposta.
‘Traição’
A aprovação da reforma envolveu também concessões aos Estados e cristalizou acordo fechado com o governador de São Paulo, Tarcísio Gomes de Freitas, para mudar a governança do Conselho Federativo, instância que será responsável por gerir a arrecadação do imposto.
As regras do conselho beneficiam os Estados mais populosos, portanto mais ricos, que terão maior poder de decisão nas deliberações do órgão. Esse trecho desagradou os Estados do Nordeste, que falam em traição.
Sem querer mexer em mais vespeiros, o relator deixou para legislação complementar a forma de distribuição do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, que receberá aporte da União de R$ 40 bilhões para compensar o fim dos incentivos fiscais, que levou à guerra tributária. O fundo ganhou o “n” de nacional justamente para que os Estados mais ricos também possam receber os recursos do fundo, que tem como finalidade combater as desigualdades regionais.
O governador de São Paulo capitaneou o acordo com Lira, Aguinaldo e Haddad, mas acabou também desgastado com seu padrinho político, o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Zona Franca e ‘gênero’
Atendendo a pedidos da bancada do Amazonas e do governador do Estado, Wilson Lima, o relator acrescentou no texto da reforma a previsão de um terceiro fundo de compensação, voltado exclusivamente à região.
O dispositivo será criado por lei complementar e abastecido com recursos da União. O objetivo, segundo a proposta, é fomentar o desenvolvimento e a diversificação das atividades econômicas no Amazonas, que hoje depende dos subsídios concedidos à Zona Franca de Manaus, os quais serão extintos depois de 2073.
Nas negociações de última hora, Ribeiro também contemplou a bancada evangélica, que requisitou a retirada da palavra “gênero” do trecho da lei que fala sobre o cashback, programa de devolução de impostos voltado à população de baixa renda. O texto anterior previa que o cashback teria como objetivo reduzir as desigualdades de renda, gênero ou raça. Os dois últimos termos caíram na versão atualizada.
Fonte: Estadão – https://www.estadao.com.br/economia/camara-aprova-reforma-tributaria-pec-45/